quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sabores e gostos de verdade


Como é bom sentir os velhos sabores de novo. Antes eu não apreciava direito, com cuidado. Simplesmente colocava na boca e engolia, sem pensar se voltaria um dia a sentir aquele gosto. Era assim com o abacate amassado com açúcar, onde as atenções estavam todas voltadas para o Muppets Baby na televisão. Ou com as jabuticabas da Tia Gema, “saboreadas” junto com a água geladinha vinda direto do poço. E eu coloco aspas na ação porque as pobrezinhas eram simplesmente jogadas para dentro do estômago. Como se fossem simples remédios para a gripe.
Naquele passado eu estava mais preocupada em me pendurar no galho mais alto antes dos meninos, do que sentir a doçura das bolinhas pretas gigantescas. Assim como a preocupação sempre foi maior com o que dizia a respeito em descobrir a cara da babá do Caco e da Pig; do que em ver se eu não estava comendo o caroço do abacate.
Enfim, a questão aqui não é a salada de frutas. Digo antes que alguém me ache louca e ainda venha me explicar que tudo isso eu posso encontrar no setor frutífero de algo que chamam de supermercado.
O que sinto, e sinto muito, é que de fato a gente se acostuma a não sentir mais os gostos. Troca o abacate por qualquer frutinha sem graça e com menos gordura vegetal. Evita jabuticaba para não ter prisão de ventre, no meio de outras milhares de negociações infelizes. E o que começa na cozinha vai então se alastrando feito vírus e então tu te acostumas a não mais dar boa noite para os pais antes de ir deitar. Acostumas-te a não ter mais paixão no teu casamento. A perder sem lutar. Acostumas com o fato de trabalhar feito escravo e ganhar um salário meia-boca. Adapta-se com o estilo de vida medíocre que leva mesmo sabendo que tem potencial para algo melhor. Tu te acostumas com os preconceitos e com as barbáries do mundo, sem mais questionar ou derramar lágrimas. Tu te acostumas com o trânsito infernal e a ver crianças nas ruas. Jurou quando jovem que não se moldaria, mas hoje tu já te acostumaste a votar no político menos corrupto. Tu te acostumaste com o gosto do refrigerante light. Com trocar o macarrão caseiro da tua vó por fast-food. Com usar salto alto só pra parecer mais elegante. Com dar e não receber. Tu te acostumas a ter sempre a iniciativa quando a real vontade é não precisar fazer nada. Acostumas a levar sempre a culpa pra evitar discussão. Acostumas a engolir choro porque já cresceu. E a gente se acostuma com os dias passando cada vez mais rápido e com a velhice chegando.
Então quando o fim da linha chega, tu te tocas que estava funcionando em modo automático esse tempo todo. Aceitando, naturalizando, engolindo caroços e mais caroços. Tapando o sol com peneira e muito sal de fruta.
E eu não precisei ir para a cama de um hospital ou ter dias contados para perceber isso. Até porque esse não é um caso particular. Eu vejo o mundo todo fazendo uma corrida às cegas. Prendendo-se a coisas e situações sem sentido por convenção e comodismo. Vendo a vida passar sem ao menos passar a mão na bunda dela. Sem aproveitar o que de fato devemos e dá prazer. Simplesmente consentindo.
Eu vejo pessoas condicionadas e de mãos presas por chicletes.
E pensar que esse quadro pode mudar não é nenhuma utopia. Eu por exemplo, estou resgatando os tais velhos sabores. Porque eu realmente havia esquecido como era ser a prioridade de alguém, de como era o abraço de pai.
E agora eu quero comprar uma piscina de plástico com desenhos azuis de ondinha e comer picolé de mini-saia. E vou mergulhar nela como se esse fosse meu último mergulho, como se a água do planeta estivesse pra acabar amanhã. Quero chupar esse sorvete até sentir o gosto da madeira do palito, como se aquele sabor fosse uma edição limitada.
E aí sim, quando eu chegar no dia do meu juízo eu vou mandar que me levem porque aqui eu já fiz tudo o que pude e não pude.
Eu vou viver o que ainda posso intensamente, provando tudo quanto é tipo de fruta. Eu só vou concordar com aquilo que me convém, e na atual conjuntura, já não concordo mais com o tempo perdido e lamentação.
Eu estou indo ali escrever a melhor história.